quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Exu em "Sortilégio"

Exu em 'Sortilégio'
É de praxe abrir um blog com uma homenagem a Exu. Nunca vi a peça Sortilégio, de Abdias Nascimento, mas ela conta a historia de:
Emanuel, um negro desesperado que acaba se auto-sacrificando para Exu.
Margarida, mulher branca casada com Emanuel que ele na verdade despreza.
Efigênia, mulher negra, a verdadeira paixão de Emanuel.
A autora Elisa Larkin Nascimento, que acaba de fazer a curadoria da exposição itinerante de 90 anos de vida (com patrocinio do IPEAFRO - Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros) do escritor, ator, pintor, e ex-senador carioca Abdias Nascimento, fez esta análise da peça:

Emanuel, em sua identidade como simulacro de branco, rejeita Efigênia, seu verdadeiro amor, em favor de Margarida, mulher branca que recorre ao casamento com Emanuel para «tapar um buraco», na expressão da Filha de Santo III: é que a virgindade perdida a deixa «acessível» ao casamento, até com um negro, para salvar a honra.
Assim, todavia, Margarida tem a sua honra protegida. À mulher negra essa protecção é negada. Confiando na lei que «protege as menores de dezoito», Emanuel tenta defender Efigênia perante a polícia invocando sua condição de menor seduzida por um homem branco. «Acabe logo com esses fricotes, vagabunda!» é a resposta da autoridade. Para Efigênia, «A eterna amargura da cor. Compreendi que a lei não está ao lado da virgindade negra.» Emanuel, por sua vez, é agredido pelo delegado aos gritos de «Meta o doutor africano no xadrez!» (Nascimento, 1959, p. 45).

A questão da virgindade, fundamental para a mulher na sociedade patriarcal da época, funciona de forma distinta para as duas mulheres: MARGARIDA: (...) Nunca imaginei que os homens fizessem questão de coisa tão sem importância... EFIGÊNIA: Sem importância para você. Eu, desde o instante em que perdi minha «importância» tive meu caminho traçado: o caminho da perdição. Não houve escolha. (p. 64.)
O estereótipo se confirma, entretanto, como obra da própria discriminação. Efigênia, já sem «importância» e sem escolha, tenta com a ajuda de Emanuel criar uma carreira artística, mas cai logo nessa armadilha:

EFIGÊNIA: Eu tinha dezessete anos e te amava, gostava de ti como jamais gostei de nenhum outro homem. Mas precisava vencer. Do meu talento não queriam saber. Só do meu corpo. Fiz dêle minha arma. (...) Usei meu corpo como se usa uma chave. (...) Os brancos têm o privilégio: sem eles, nada feito. (p. 48, 49, 62.)

Margarida, por sua vez, satisfaz a curiosidade originada no estereótipo da virilidade do homem negro e logo se cansa de Emanuel, cuja solidão cresce ao descobrir que Margarida abortara o filho, com medo de este nascer negro.
Provocado ainda pelas tramas de Efigênia, cujo ódio a Margarida é função não apenas do ciúme amoroso como também da injustiça racial, Emanuel acaba matando Margarida e por isso está fugindo da polícia. Sua última fala, ao aceitar o sacrifício ritual, é proferida com calma e decisão: «Eu matei Margarida. Sou um negro livre» (p. 79).

Se Sortilégio oferece uma solução simbólica e mítico-espiritual para Emanuel, para Efigênia o que se concretiza é o destino decretado pela sociedade dominante, porém com o aval das forças cósmicas. Ela é entregue à Pomba-Gira, deusa do ato sexual:
EFIGÊNIA: Satisfazendo meus desejos, meus caprichos (mordaz) estou conquistando eu espaço, cavalgando a minha lua, como diz você. (...) Aos poucos minha carreira foi ficando de lado. Os vestidos elegantes, meu corpo, até meu nome, tudo perdeu o sentido. Só importava meu desejo de homens. (...) (mística) Eu cumpria uma ordem divina. Executava um ato litúrgico. (vulgar) Por isso deixei Copacabana. Mudei para a Lapa. (p. 47, 49-50.) Na macumba carioca, Pomba-Gira representa a contrapartida feminina de Exu.

Assim, ao invocar os Exus no final da peça, o último nome pronunciado é justamente o dela. Implicitamente, Efigênia está convocada, junto com o herói, para o sacrifício ritual que configura a saída do impasse. Entretanto, na sua versão original a peça não concretiza essa solução em cena, pois Efigênia some, sem assumir a sua parcela de responsabilidade na morte de Margarida e portanto sem se redimir, no instante anterior ao momento em que Emanuel realiza a sua transformação. Na última cena dos dois, Emanuel a esbofeteia e a chama de assassina, prostituta de corpo e alma. Efigênia, «impassível», acena à polícia com o lírio ensangüentado e desaparece.
Na segunda versão da peça, no momento do sacrifício de Emanuel, Efigênia «aparece e fica atrás de Emanuel; ela veste um traje ritual de Ogun». As Filhas de Santo anunciam: «Pronto: obrigação cumprida!», mas na nova versão a peça não acaba aí: Efigênia põe a coroa de Ogun na cabeça, e empunha a lança. O coro, as Filhas e a Iyalorixá saudam Ogunhiê! e se atiram de comprido ao chão, batendo a cabeça no solo em sinal de reverência e obediência. Seguem-se momentos de silêncio absoluto. Depois Efigénia levanta a espada num gesto enfático de comando gritando forte Ogunhiê! O ponto de Ogun se eleva e se transforma num ritmo triunfal e heróico.
A Iyalorixá saúda: «Axé para todos: para os mortos... os vivos... e os nãonascidos! Axé à vitória de nossa luta!» O coro responde repetidamente «Axé!...», e assim termina a peça: «Enquanto cantam e dançam o pano desce lentamente» (Nascimento, 1979: 139-140). Infundida do axé de Ogun, desafiador das fronteiras cósmicas (Soyinka, 1976), Efigênia passa de prostituta anónima a líder da comunidade, que se liberta em se conjunto com o sacrifício de Emanuel. A realização do destino simbólico do herói junta-se com o da heroína e se reintegra à matriz primordial, comunal, do drama ritual, emergindo livre da convenção ocidental da solidão do indivíduo diante de seu destino.

Em inglês, estão publicadas as duas versões de Sortilégio, em traduções de Peter Lowndes (primeira versão, editada pela Third World Press, de Chigaco, em 1976) e de Elisa Larkin Nascimento (na antologia Crosswinds, organizada por William Branch e editada pela Indiana University Press, 1993).

Nenhum comentário: